O curandeiro, o Médico e o Monstro
Numa bodega à beira de uma estrada poeirenta, em um dos vilarejos mais isolados do Império, um homem magro e sombrio sorvia sua bebida em silêncio, oculto nas sombras do canto mais obscuro da taverna. A luz da única fogueira, queimando morosa no centro do cômodo, mal ousava iluminar aquele canto onde ele se escondia, de costas para a parede, com uma janela embora fechada ao lado seria uma fuga estratégica, caso precisasse.
Era início da tarde, logo após o almoço, mas o movimento no local era escasso. As únicas moedas que tilintaram sobre o balcão do bodegueiro tinham sido as dele. Todos os outros anotavam seus pedidos em um caderno velho que o dono da bodega mantinha embaixo do balcão, revelando que o comércio local sobrevivia à base de escambo, provavelmente de produtos agrícolas. Para um homem com suas habilidades, aquilo era uma péssima notícia. Aplicar pequenos golpes na humilde população não renderia o suficiente para se manter por muito tempo. Seus dias estavam sendo árduos e o peso da miséria de ultimamente era visível, embora não passasse fome, seu corpo estava magro, quase cadavérico, e seu rosto quase tinha o aspecto de uma caveira. E era assim que ele era conhecido ultimamente.
Enquanto bebia, ele observava cada detalhe ao redor. O bodegueiro, um homem gorducho de bigode grosso e braços fortes, aparentava a idade avançada, mas mantinha-se vigilante, sempre com um pano imundo em mãos, limpando canecas de barro assado com uma precisão suspeita encostado contra a pia atrás do balcão. Para o homem magro, aquele gesto era um disfarce; sabia que o dono da bodega provavelmente mantinha uma besta carregada ou uma lâmina afiada debaixo do balcão, pronto para agir caso algo saísse do controle.
Sírio |
Na mesa ao lado, dois trabalhadores rurais riam e conversavam animadamente enquanto bebiam suas canecas de cerveja e terminavam seu ensopado de legumes, salpicado de pedaços quase microscópicos de carne, única opção de refeição oferecida hoje. Era uma cena comum, exceto por uma figura mais inusitada sentada à outra mesa: um jovem, não mais que 20 anos, com a cabeça raspada começando a exibir os primeiros fios ruivos voltando a crescer. Seu rosto, liso e sem barba, indicava juventude. Ele usava um tapa-olho sobre o olho direito, o que, combinado à pesada luva de couro em sua mão direita, lhe dava uma aura misteriosa. Apesar da aparência humilde, com roupas surradas e uma capa de viagem remendada, ele comia com a elegância e a delicadeza de um nobre, o que destoava do ambiente bruto ao redor. Ele trazia junto consigo uma mochila grande e desgastada ao lado de sua cadeira que parecia pesada demais para alguém de seu porte.
De repente, um dos trabalhadores, já bêbado, cambaleou até a mesa do garoto e bateu com força nela, interrompendo o silêncio.
— Tu é curandeiro, não é, garoto? — a voz arrastada do homem ecoou pela taverna.
O jovem levantou o olhar lentamente, fixando o olho bom no homem, sem expressar nenhum movimento.
— Quem quer saber? — respondeu com um tom calmo e frio.
— Calma, o coração rapaz. Só tô querendo te avisar — o trabalhador gaguejou, balançando. — Ouvi dizer que tem uma praga numa cidade aqui perto. Estão convocando todos os curandeiros pra ajudar lá.
— Estou apenas de passagem — o garoto respondeu, sua voz imperturbável.
— Mas tu é bom — insistiu o homem, com um sorriso. — O velho Roman disse que tu curou a dor no joelho dele. Tu vai ser útil por lá.
O garoto, então, parou por um momento, pensativo, antes de responder:
— Onde?
— Adremalech, ao sul daqui.
O homem magro, sentado nas sombras, ouviu cada palavra com interesse crescente. Ele conhecia bem Adremalech, havia aplicado diversos golpes nos poderosos locais, às vezes escapando com os bolsos cheios e os rastros limpos, outras mais sujo que pau de galinheiro. Para os padrões da região, a cidade era de tamanho médio, o suficiente para abrigar uma elite ansiosa por poder e controle. Embora ele não tivesse a intenção de voltar tão cedo, uma epidemia era a oportunidade perfeita — ricos desesperados, famílias inteiras à beira do colapso, fortunas sendo deixadas para trás pelos que pereciam. Era um cenário ideal para alguém com seus "talentos". Onde havia desespero, havia fortuna esperando ser tomada — e ele sabia exatamente como tirar proveito disso.
— Tudo bem, vou passar por lá. — murmurou o garoto, desinteressado, como se o destino da cidade fosse apenas um detalhe.
O trabalhador bêbado voltou para a mesa, e o jovem terminou sua refeição calmamente, sem pressa. Quando finalmente se levantou, pegou sua imensa mochila com sua mão enluvada e a colocou sem dificuldades sobre o ombro e jogou algumas moedas sobre o balcão, acenando brevemente para o bodegueiro, que retribuiu com um movimento de cabeça. Assim que o garoto saiu pela porta, o homem magro, observando tudo, decidiu segui-lo, mas quem ele deveria ser agora? Qual personalidade seria a mais indicada para melhor influenciar o garoto? Certamente a sombra invisível que ele era até agora não seria a ideal. Então ele se decidiu.
— Boa tarde, senhor. — chamou ele, apressando os passos para alcançar o jovem.
O garoto, porém, não reduziu a marcha, ignorando a saudação. O homem, determinado, acelerou o passo e emparelhou ao lado dele.
— Não quero problemas — o garoto disse, sem olhar para o lado.
— É um mal entendido senhor. Eu não trago problemas, trago soluções.
O jovem suspirou e, sem esconder a irritação, perguntou:
— O que você quer?
— Antes de mais nada, permita-me apresentar: sou Sírio Filaucioso. — Ele fez uma reverência exagerada, teatral.
— Esse nome é inventado. — o garoto comentou, com uma sobrancelha erguida.
— E que nome não é inventado, senhor? Todas as palavras, alguém deve tê-las inventado um dia, muito tempo atrás é claro — Sírio sorriu astuto. — E como devo chamá-lo?
O garoto hesitou por alguns segundos, como se pensasse em uma resposta, antes de falar:
— Beneplácito Cuntatório.
Sírio riu com genuína diversão.
— Muito bem, senhor Beneplácito, parece que ambos conhecemos muito bem nomes inventados.
O garoto esboçou um sorriso discreto, mas permaneceu em silêncio. Sírio aproveitou a brecha para continuar.
— Não pude deixar de notar que o senhor está indo para Adremalech, imagino que para ajudar com a praga que se espalha por lá?
— E? — respondeu o jovem, sem confirmar nem negar.
— Acho que o senhor não está ciente dos perigos que rondam essas estradas. Bandidos, monstros... muitos deles vagueiam por essas terras devastadas.
— E daí? — repetiu o garoto, impassível.
— E daí que, como um homem dedicado à cura, o senhor pode precisar de proteção para essa jornada. E, por acaso, eu sou um homem de armas, entre outras habilidades.
O garoto lançou um olhar avaliador de cima a baixo no magrelo que caminhava ao seu lado. Sírio imediatamente afastou sua capa para mostrar sua armadura de couro, espada curta e várias adagas posicionadas em locais estratégicos do corpo. Mas, Sírio era visivelmente menor e mais frágil do que ele próprio, uma visão que não inspirava confiança.
— Você vai me proteger? — ele perguntou, com uma leve dose de sarcasmo na voz.
— Não se deixe enganar pelas aparências, senhor. Sou um lutador implacável. — Sírio respondeu com seriedade.
O jovem deu outra olhada rápida, mas logo voltou a encarar o caminho à frente, claramente desinteressado.
— Não estou interessado. — murmurou, encerrando o assunto.
Sírio, no entanto, já esperava essa reação. Raramente suas tentativas de vender seus serviços como guarda costas eram bem-sucedidas. "Por que será?", ele se perguntava com ironia. Na verdade, Sírio queria apenas uma companhia para uma viagem difícil e perigosa como essa.
— Bem, já que o senhor não está interessado em contratar meus serviços, o senhor se incomodaria se eu simplesmente o acompanhasse? Acontece que estou indo para o mesmo lado.
— Faça o que quiser. — o garoto respondeu, indiferente.
E com isso, Sírio sorriu satisfeito.
A viagem continuou como começou, com Sírio falando incessantemente, enquanto o garoto respondia monossilabicamente, cada palavra com um esforço mínimo de interação. O silêncio que se instalava entre as respostas apenas encorajava Sírio a continuar tagarelando, apesar da apatia de seu companheiro.
De repente, Sírio percebeu uma movimentação incomum mais à frente, logo após uma curva estreita na estrada. Sua intuição o alertou, e ele, discretamente, diminuiu o passo, escorregando para as moitas que ladeavam o caminho. Escondido, observou o garoto continuar, alheio ao perigo. Era exatamente por isso que Sírio optava por viajar com alguém como aquele jovem magrelo e inofensivo: ele serviria como isca, atraindo os bandidos, enquanto Sírio fugia sem ser notado.
Mas algo estava estranho. Uma turba de goblins de pouco mais de um metro de altura saltou na estrada e cercou o garoto, que parou, mas sem demonstrar medo. Mantinha-se calmo, quase indiferente. Intrigado, Sírio hesitou em fugir. Havia algo naquela cena que o fez aguardar mais um pouco. O garoto, em uma situação em que qualquer um tremeria de medo, estava tranquilo demais.
As criaturas verdes o rodearam, grunhindo e mostrando os dentes afiados, mas ele sequer piscou. De repente, um dos monstros avançou por trás. Com um movimento ágil, o garoto sacou um cetro das vestes e, em um piscar de olhos, conjurou uma lufada de vento tão forte que lançou o goblin contra seus companheiros que permaneciam à frente do garoto. Os outros jogaram suas lanças, mas ele as desviou com um redemoinho de ar que girou ao redor de seu corpo como uma muralha invisível.
Então, com um gesto preciso, o jovem mago formou uma enorme esfera de ar pulsante na ponta do seu cetro e a disparou contra o grupo à sua frente. A esfera explodiu no centro deles, criando um turbilhão que espalhou os goblins em todas as direções como folhas ao vento.
— Ah, então é por isso que ele estava tão tranquilo... — Sírio murmurou para si mesmo, maravilhado. O garoto não era apenas um curandeiro qualquer, ele era um Mago dos Ventos, e dos talentosos.
Enquanto Sírio observava, um goblin gigante emergiu das moitas à frente, rugindo ordens para os menores. Imediatamente, as criaturas remanescentes atacaram em uníssono. O garoto, porém, se transformou em um borrão de pura velocidade, esquivando-se com uma agilidade sobrenatural e desferindo golpes rápidos, como um fantasma entre os goblins. Sírio ficou atônito, aquela velocidade ele só havia visto uma vez antes, em um Cavaleiro Imperial durante um duelo na capital, e eles eram considerados seres sobre-humanos, com força e reflexos quase sobrenaturais.
Apesar de sua destreza, o garoto cometeu um deslize. O goblin gigante conseguiu agarrar seu cetro durante um momento de distração, um movimento inteligente para uma criatura tão bruta. Provavelmente ele sabia que, sem o cetro, objeto que usava para canalizar suas magias, o mago perderia grande parte de sua capacidade de luta. Agora, o garoto estava em apuros, enfrentando uma criatura pelo menos duas vezes maior e no mínimo três vezes mais pesada do que ele.
Para surpresa de Sírio, o garoto não se intimidou. Ele travou uma luta de força contra o goblin gigante, mantendo-se firme segurando o cetro com a mão enluvada, como se tivesse força sobre-humana. O monstro, percebendo a resistência inesperada, preparou um soco massivo, mas antes que pudesse desferi-lo, o jovem mago usou toda sua velocidade para desferir um chute certeiro no abdômen da criatura, que voou para trás, permitindo que o garoto recuperasse o cetro com um puxão habilidoso.
O goblin gigante caiu de costas, inadvertidamente se aproximando do esconderijo de Sírio. Enquanto o monstro tentava se recompor para atacar novamente, Sírio aproveitou a oportunidade. Com precisão mortal, ele cravou uma das suas adagas nas costas do goblin, bem onde estaria o coração. A criatura tombou com um grunhido final, caindo pesadamente no chão. Os goblins menores, apavorados com a morte do líder, fugiram em todas as direções, desaparecendo na floresta.
O garoto se virou para Sírio, ainda controlando a respiração, e perguntou com uma ponta de sarcasmo:
— Você não ia me proteger?
— E não protegi? — Sírio sorriu, fazendo uma mesura teatral. — Esperei o momento perfeito, matei o chefe e espantei todos os outros goblins para você. E tudo isso, é claro, completamente de graça! Mas, agora que penso bem, talvez você me deva um pouco de ouro, curandeiro, ou deveria dizer Mago dos Ventos.
O garoto, sem responder, ajeitou suas vestes e começou a caminhar novamente, impassível. Sírio, determinado a manter a conversa, correu para alcançá-lo.
— Porque não me disse que era um Mago dos Ventos tão poderoso? — Sírio indagou, tentando parecer casual. — Ouvi dizer que apenas os mais talentosos conseguem impulsionar sua velocidade com magia. E os que combinam força e velocidade, então... são verdadeiros prodígios!
— Não disse porque não é da sua conta. — respondeu o jovem, sem nem ao menos olhar para ele.
E assim, os dois seguiram viagem. Sírio, agora mais interessado do que nunca em seu enigmático companheiro, mal conseguia conter sua curiosidade.
— Ei, você viu o tamanho daquele goblin?...
***
A dupla incomum se aproximava da sombria cidade de Adremalech. O garoto sabia disso ao perceber que as estradas tornavam-se cada vez mais largas e bem pavimentadas, um sinal claro de que a civilização estava próxima. A viagem até ali havia sido exaustiva, não só pelo terreno traiçoeiro, mas pelo constante falatório de seu inesperado companheiro. Nem mesmo à beira da fogueira, durante os breves momentos de descanso, Sírio conseguia ficar em silêncio. O garoto já conhecia tudo o que precisava sobre ele: um trambiqueiro astuto, sem um pingo de moral, um gatuno e falsário que só permanecia ao seu lado por puro interesse. E o pior de tudo era que Sírio sabia mais sobre ele do que deveria. Isso deixava o garoto inquieto.
A paisagem começou a mudar à medida que avançavam. No horizonte, as torres negras de Adremalech surgiam como presas afiadas no céu tingido pelo crepúsculo. Conforme se aproximavam, o movimento aumentava: carroças abarrotadas puxadas pelos robustos dinossauros Edmontonia, com os poucos pertences de famílias fugindo da praga, seus rostos cansados e desesperançosos, os olhos baixos, evitando qualquer contato. O garoto não pode deixar de notar que uma grande porcentagem dos refugiados era de origem não humana como Elfos e Anões.
Quando se aproximaram de grandes portões, uma enorme placa de madeira presa à muralha da cidade se destacava, gravada com palavras que traziam uma sensação de desconforto: "Adremalech, Cidade da Morte".
— Bem, Bene, acho que a cidade está fodida. — Sírio comentou com a leveza de quem falava sobre o tempo. "Bene" era o apelido que Sírio lhe dera, sem qualquer cerimônia.
Bene ignorou o comentário, seus olhos fixos nos portões maciços da cidade. À medida que se aproximavam dos guardas, os ruídos do outro lado da muralha ficaram mais claros: uma cacofonia de vozes sobrepostas, como um mar de almas atormentadas. Quando chegaram perto, um dos guardas gritou:
— Alto lá! A cidade está em quarentena! Ninguém entra, ninguém sai!
Sírio, sempre rápido em situações como essa, inclinou-se para perto de Bene, sussurrando:
— Deixa comigo. Vejam bem senhores, precisamos entrar porq…
Mas antes que ele pudesse abrir a boca para seu habitual discurso embusteiro, Bene o cortou abruptamente:
— Sou curandeiro. Vim por causa da convocação para ajudar com a praga.
Os guardas se entreolharam, surpresos. Fazia tempo que nenhum curandeiro se arriscava a entrar na cidade.
— Tem certeza de que quer entrar? — perguntou um dos guardas, a voz baixa e grave. — Uma vez lá dentro, não poderá mais sair. A cidade está fechada, e não há previsão de quando os portões serão reabertos.
— Tenho certeza.
— E ele? — O guarda indicou Sírio com um movimento de cabeça.
— Sou assistente dele — Sírio respondeu, sem perder o sorriso. — Ele não cura ninguém sem mim.
Bene apenas deu de ombros, sem desmentir. Os guardas hesitaram por um momento, mas acabaram abrindo os portões pesados. Eles entraram no espaço estreito entre a muralha externa e as grades internas, uma área destinada a controlar o fluxo de pessoas. A porta de ferro e madeira maciça atrás deles se fechou com um som estrondoso, e a multidão agitada do outro lado das grades começou a gritar e empurrar. Guardas empunhando lanças os mantinham afastados, prontos para reagir a qualquer tentativa de invasão.
— O que estão fazendo aqui? — um dos guardas perguntou, a voz rouca devido ao esforço de controlar a situação.
— Sou curandeiro, vim ajudar. — Bene respondeu, mantendo a calma.
Os guardas, surpresos com a resposta direta, se entreolharam novamente, como se estivessem ouvindo o impossível. Um deles murmurou algo para o colega antes de voltarem sua atenção para Bene.
— Você tem certeza?
— Eu não tenho certeza nenhuma! — Sírio sussurrou, preocupado, no ouvido de Bene.
— Tenho sim. — Bene ignorou o comentário.
Após alguns segundos de deliberação silenciosa, os guardas finalmente decidiram deixá-los passar. Eles abriram uma pequena brecha nas grades de ferro, apenas o suficiente para que os dois se esgueirassem para dentro. A multidão ao redor ficou agitada, e os guardas tiveram que usar suas lanças para afastar os mais ousados.
Bene foi o primeiro a atravessar, passando sua mochila primeiro pelo pequeno vão. Sírio seguiu logo atrás, sorridente e despreocupado, como se estivesse numa aventura e não numa cidade à beira do colapso. Depois que passaram, os guardas fecharam rapidamente a passagem.
— Onde fica o centro de cura? — Bene perguntou, sem perder tempo.
— Há vários — respondeu um dos guardas. — Mas siga para o templo de Anhun. O Medimago chefe está coordenando os esforços de lá. Boa sorte, vai precisar. — O guarda apertou o antebraço de Bene, em um gesto grave.
Já dentro da cidade, as ruas estavam desertas, poucos quarteirões após eles deixarem as muralhas. Apenas o som distante de lamentos e o cheiro pesado de podridão preenchiam o ar. O lixo acumulava-se nas vielas, junto com o cheiro de morte que emanava das frestas das janelas e portas fechadas a sua volta. A cidade, outrora próspera, agora parecia um túmulo a céu aberto.
Sírio olhou ao redor, visivelmente desconfortável. Finalmente, ele parou, virando-se para Bene com um sorriso cínico.
— Acho que é aqui que nos despedimos, meu amigo. — Ele estendeu a mão, para cumprimentá-lo. — Foi um prazer viajar com você.
Bene hesitou, mas acabou apertando a mão de Sírio.
— Gostaria de dizer o mesmo, — respondeu com uma voz carregada de desconfiança.
— Até mais, curandeiro. — E com isso, Sírio desapareceu atrás de uma esquina, com aquele mesmo sorriso enigmático que indicava algum objetivo obscuro em mente.
Bene observou o caminho por um instante, depois voltou sua atenção para o templo de Anhun. Não havia tempo a perder.
***
Em direção ao templo de Anhun Bene encontrou uma cidade emersa em uma atmosfera pesada e opressiva. As ruas estavam quase desertas, exceto por figuras encurvadas que tossiam e gemiam nas sombras. Lixo e cadáveres enchiam os becos, e o cheiro pútrido de morte estava em toda parte. Era como se a própria cidade estivesse morrendo, engolida pela praga que assolava seus habitantes.
Ao se aproximar do templo de Anhun, ele notou uma tenda improvisada, servindo como triagem para os doentes antes que fossem admitidos na clínica improvisada. Ao entrar na tenda, foi recebido por uma cena de desespero. Uma multidão de doentes, com olhos febris e pele coberta de manchas negras, implorava por ajuda, suas vozes entrecortadas pelo esforço de continuar respirando. Curandeiros se moviam freneticamente entre macas de pano, revezando-se entre os pacientes, numa tentativa fútil de conter o avanço da doença.
Foi então que seus olhos pousaram em uma criança convulsionando numa das macas. Seus pequenos braços e pernas se sacudiam violentamente, enquanto sua mãe, desesperada, tentava segurar o corpo frágil. Quando Bene se aproximou para ajudar, a mulher o puxou pelo manto e sussurrou, com a voz trêmula de medo:
— Ela... ela ouve a doença... diz que a doença fala com ela... que está crescendo...
A criança cessou suas convulsões, seu corpo inerte por um momento. Quando seus olhos febris finalmente se abriram, ela olhou diretamente para Bene. Nesse instante, ele sentiu algo — uma presença estranha, quase sombria, espreitando por trás da febre que dominava o corpo da menina. Era como se a doença tivesse vida própria, como se estivesse consciente da presença dele.
Instintivamente, Bene pegou seu cetro. Sentindo a mana fluir em seu corpo, ele se concentrou no orbe elemental do ar que adornava o topo do objeto canalizando sua mana para detectar a presença de magia ao redor. Imediatamente, as auras dos objetos mágicos carregados pelos curandeiros acenderam-se em auras brilhantes, cintilando ao redor da tenda. Ele observou a menina com atenção, esperando ver algo semelhante emanando dela, mas... nada. Nenhuma aura, nenhuma manifestação mágica.
Determinado, Bene retirou de um dos seus bolsos uma lente cor violeta, colocando-a sobre o olho, na esperança de captar algo que pudesse estar oculto aos sentidos normais. Porém, mais uma vez, nada mudou. “Talvez precise de uma análise mais profunda”, mas ele não poderia retirar seu tapa olho agora, não com tantas pessoas por perto. Ele pretendia rever o caso da menina, mas depois desse dia ele nunca mais a viu.
Nesse momento, uma curandeira, trajando um avental emborrachado e uma máscara com um longo bico curvado, se aproximou-se dele.
— Um mago? Posso ajudá-lo em algo, senhor?
— Procuro o responsável. O medimago que está coordenando os tratamentos. Sou curandeiro e vim ajudar.
— Curandeiros sempre são bem vindos. Mas no momento o senhor Dalibor está ocupado em seu laboratório trabalhando em uma vacina. Quando ele vier visitar os pacientes você poderá conversar com ele.
— Tudo bem, vou ajudar no que posso então.
A curandeira numa sala adjacente lhe entregou uma máscara de couro com lentes de vidro nos olhos e um bico curvado na frente, semelhante à dela.
— Use isto. Ainda não sabemos ao certo se a doença se espalha pelo ar. Coloque algodão no bico e mantenha-o limpo. Mesmo que não previna a doença, ao menos atenuará o cheiro da morte que se espalha por toda parte.
O garoto |
A curandeira, que se apresentou como Joane, chefe dos curandeiros do templo, conduziu Bene ao interior do templo de Anhun, agora transformado em um hospital improvisado. Fileiras intermináveis de doentes enchiam o grande salão, suas faces marcadas pelo sofrimento, com corpos cobertos de feridas necróticas. O cheiro de morte era sufocante, misturado ao aroma fraco de ervas e medicamentos que faziam pouco para aliviar a dor.
As camas estavam lotadas, e Joane mostrou-lhe cada canto do templo: desde a sala onde os escassos remédios eram estocados, até o salão principal, onde todos os pacientes agonizavam juntos, sem qualquer esperança de recuperação.
Finalmente, Joane o levou até uma sala fria e sem janelas, onde grandes blocos de gelo mantinham o ambiente gelado. Ali, Bene viu corpos empilhados, cobertos por lençóis manchados de sangue e pus.
— Por que não queimam os corpos? — ele perguntou, horrorizado.
— Ordens do Dalibor — respondeu Joane, séria. — Ele precisa de amostras da praga em todas as suas fases. Vem aqui buscar os corpos para estudo regularmente.
Bene achou este procedimento um pouco estranho, na escola nunca ouviu nada parecido, mas sem alternativa começou a trabalhar. Protegido com um avental e luvas de borracha extraída de seringueiras, ele limpava feridas e usava tratamentos fitoterápicos e magia para fechar as chagas mais profundas. Embora soubesse que não havia cura, fazia o possível para amenizar a dor dos pacientes. Contudo, a cidade já estava sem sedativos, e os doentes gemiam em agonia.
O tempo passou, e Bene se tornou uma peça essencial na equipe de curandeiros. Foi então que o Medimago Chefe, Dalibor, uma figura alta, sinistra e pálida, entrou no templo. Suas olheiras profundas mostravam sinais de exaustão, mas ele ainda visitava todos os pacientes. Parou ao lado de um homem que Bene tratara recentemente, cuja condição parecia estável, ao menos por enquanto.
Dalibor |
— Quem tratou este paciente? — Dalibor perguntou, intrigado.
— O garoto novo — respondeu Joane.
Bene se aproximou, enquanto Dalibor o avaliava com interesse.
— Belíssimo trabalho — disse o Medimago. — Técnica rara, só vi algo assim na Escola de Magia de Jurubatiba.
— Estudei lá, mas não pude concluir os estudos — Bene respondeu.
— Uma pena. Você tem talento. Se não estivéssemos no meio de uma epidemia, o contrataria imediatamente como residente em minha clínica. Talvez eu precise de alguém com o seu conhecimento ao meu lado.
— Fico lisonjeado.
— Que assim seja então, a partir de hoje você, qual o seu nome mesmo?
— Horripilus Belmonte. Mas pode me chamar somente de Belmonte.
— Sua família tinha péssimo gosto para nomes garoto.
— Realmente — ele falou.
— A partir de hoje, Belmonte, você dividirá seu tempo entre tratar os pacientes e realizar pesquisas de campo. Visite os outros centros de cura e documente as boas práticas em um diário. Trarei as informações para cá, mas preciso de ajuda para disseminar as melhores soluções. Estou concentrado exclusivamente em criar uma vacina.
A doença, no entanto, continuava implacável. A cada dia, surgiam novas mutações, e as vacinas de Dalibor, feitas no dia anterior, já não surtiam mais efeito. Era como se a doença ganhasse força a cada tentativa de contê-la, tornando-se mais resistente e mortal.
Bene percebeu que vir para Adremalech havia sido um erro. A cidade estava ficando arruinada, até os guardas no portão estavam começando a fraquejar e a cada dia menos deles apareciam para a segurança da cidade e um a um, os curandeiros também sucumbiam à praga.
Após uma semana de trabalho incessante, a cidade parecia condenada. Não havia mais uma única pessoa que não estivesse, de algum modo, infectada pela praga — seja por variantes antigas, menos potentes, ou pelas novas mutações, mais fortes e letais.
— Toda a cidade está infectada, Belmonte — comentou Joane, com um tom de resignação. — Não há mais ninguém saudável. Até nós mesmos já apresentamos sinais de contaminação... exceto você.
— Sou extremamente cuidadoso e, por sorte, excepcionalmente resistente a doenças, mas temo que em algum momento também serei infectado — respondeu Belmonte, tentando soar confiante.
— Ele não é o único — uma voz fraca veio de uma das macas próximas. Um dos pacientes mais recentes, debilitado, mas ainda lúcido, continuou: — Há um grupo na parte nobre da cidade, chamam-se "Os Escolhidos de Lathrin". Dizem que são imunes à praga e estão oferecendo essa imunidade para quem comparecer aos cultos deles.
Joane e Belmonte trocaram olhares de espanto.
— Qual é a chance de ricos e poderosos serem imunes a essa doença, enquanto o resto de nós está morrendo? — Joane murmurou, intrigada.
— Vou descobrir isso agora mesmo — Belmonte disse, decidido, enquanto deixava o templo às pressas.
Enquanto caminhava pela cidade, ele testemunhou o caos que havia se instalado o portão principal havia sido completamente abandonado pela milícia local, a cidade estava oficialmente desprotegida e logo não existiria nada que impedisse o total caos social, seu portões foram lacrados pelo lado de fora pelos guardas que permaneciam lá fora. As áreas mais pobres estavam completamente isoladas, barricadas de madeira e pedra erguidas para impedir que os infectados tentassem escapar e levar a praga para a elite. Belmonte sentiu uma fúria crescer em seu peito ao ver aquelas cenas. Por um momento, considerou destruir as barricadas e libertar as pessoas, mas sabia que, antes de qualquer coisa, precisava verificar o culto dos Escolhidos de Lathrin. Se o que o paciente havia dito fosse verdade, ele teria em mãos algo crucial para Dalibor: uma amostra que poderia levar à cura definitiva.
Chegar à fortaleza onde o culto se reunia não foi difícil. Filas de infectados se dirigiam para lá esperavam ansiosamente para entrar pelos portões, todos com os primeiros sinais da praga eram convidados a entrar. Já aqueles em estágios mais avançados eram impiedosamente barrados pelos guardas.
— Sou um enviado do doutor Dalibor. Preciso falar com o líder desta fortaleza — Belmonte disse ao guarda que bloqueava sua entrada.
— Curandeiros não são bem-vindos aqui. Apenas os crentes em Lathrin têm permissão para entrar — respondeu o guarda com frieza.
— Quem é Lathrin? — Belmonte perguntou, mas o guarda apenas repetiu que era o messias deles, o que parecia ser um discurso ensaiado, sem oferecer qualquer explicação real.
Percebendo que não conseguiria passar pelos portões, Belmonte se afastou, fingindo desistir. Quando estava longe o suficiente para não ser notado, sacou seu cetro e, com um movimento sutil, convocou o vento, impulsionando-se até o topo das muralhas da fortaleza. Pousou silenciosamente enquanto o sol se punha, tingindo o céu de laranja e púrpura. Com passos cuidadosos, caminhou sobre os muros até encontrar uma claraboia iluminada. Daquela posição, ele tinha uma visão privilegiada do salão principal.
Deitado sobre o telhado, Belmonte espiou através da claraboia. Lá embaixo, dezenas de pessoas, algumas mal conseguindo se manter de pé, estavam encapuzadas e cabisbaixas, observando em silêncio um homem diante de um altar. O líder, também encapuzado, carregava pesados colares de ouro sobre os ombros e, atrás dele, um grupo de pessoas aguardava dentro de um círculo desenhado no chão com o que parecia ser sangue, cercado por velas. A expressão dos que estavam dentro do círculo era de puro terror.
O líder, em transe, lia algo de um pergaminho preso ao altar, suas palavras se tornando mais frenéticas a cada momento. Quando alcançou o auge de sua prece, começou a recitar palavras ininteligíveis, antigas, e o garoto conhecia muito bem os antifonemas carregados de poder das Trevas. Ergueu as mãos ao alto, e uma luz púrpura começou a emanar delas. Ele estendeu uma mão em direção aos encapuzados e a outra em direção aos que estavam presos no círculo. De suas palmas, a luz saltou em ambas as direções. As pessoas no círculo começaram a gritar desesperadamente enquanto seus corpos eram devastados pela praga, avançando em segundos para os estágios finais da doença: chagas supuradas de pus e sangue se espalharam por suas peles, em um espetáculo de agonia. Do outro lado, os encapuzados gritaram, mas seus gritos eram de alívio. Seus corpos, antes enfraquecidos, endireitaram-se e, aos poucos, pareciam rejuvenescidos, livres dos sinais de infecção.
Belmonte, atônito, sentiu um calafrio correr por sua espinha. O que testemunhava não era uma cura, mas um perverso ritual de transferência, onde o sofrimento e a doença de alguns eram passados para outros, como uma barganha diabólica. "Os Escolhidos de Lathrin" não eram imunes — estavam drenando a vitalidade dos infectados para sobreviver.
— Isso não pode continuar... — sussurrou Belmonte para si mesmo, apertando com força o cetro em suas mãos.
Antes mesmo de o cultista concluir seu encantamento, Belmonte saltou através da claraboia, que se estilhaçou sob o impacto de seu corpo, lançando fragmentos de vidro pelo grande salão. No ar, ele ergueu seu cetro, invocando os ventos para suavizar sua queda. Quando pousou, o deslocamento do ar gerado pelo feitiço provocou uma densa nuvem de poeira, lançando rajadas que obrigaram os cultistas encapuzados a protegerem os olhos, quando a poeira baixou avistaram o garoto ali no centro deles trajando uma máscara da praga.
— O que significa isso? — exclamou um dos cultistas, apressando-se a gritar por ajuda. — Guardas! — ele vociferou.
Ouviu-se um ruído crescente no corredor, sinalizando a aproximação dos guardas. Belmonte, com um gesto firme de seu cetro, lançou uma poderosa onda de pressão de ar contra as portas, fechando-as com um estrondo ensurdecedor e bloqueando a entrada de reforços. Sem perder tempo, ele correu em direção às vítimas do sacrifício.
Enquanto se aproximava, o cheiro nauseante da decomposição alcançou suas narinas, mesmo com a proteção de sua máscara da peste. A praga havia avançado tanto nas vítimas que suas carnes apodreciam, espalhando o fedor de morte. Belmonte examinou os corpos com atenção. A maioria já não respirava mais, e os poucos ainda vivos mal conseguiam ofegar.
— O que vocês fizeram? Seus monstros! — Belmonte retirou a máscara, revelando seu olho marejado.
— Eles já estavam doentes — justificou o cultista que liderava o ritual, sua voz desprovida de remorso. — Apenas tentamos melhorar suas condições de saúde.
— Não minta para mim. Eu vi o que aconteceu — Belmonte interrompeu, o tom cheio de desprezo. — Vocês drenaram a vida deles para curar os próprios corpos!
Um murmúrio inquietante se espalhou entre os cultistas, e um deles se aproximou do líder, sussurrando-lhe algo ao ouvido. O homem de colares pesados voltou sua atenção para Belmonte, um sorriso frio surgindo em seus lábios.
— Você é obviamente um mago poderoso, e, pelo que vejo, saudável. Também parece ser bastante inteligente. Por que não se junta a nós? Com um homem como você em nossas fileiras, poderíamos alcançar grandes coisas. Sobreviveríamos juntos.
Belmonte sentiu o veneno nas palavras. Ele sabia que estavam apenas ganhando tempo, esperando que os guardas derrubassem as portas ou que, de alguma forma, o subjugassem.
— Eu sou um curandeiro. Fiz um juramento de ajudar os doentes e oprimidos. Jamais me juntaria a uma corja vil como vocês.
Vendo que sua oferta não surtiu efeito, o cultista deu um passo à frente, o tom de sua voz carregado de ameaça.
— Eu sou um poderoso mago das Trevas, garoto. Pense no que poderia conseguir se me seguisse. Poder além de qualquer compreensão.
Belmontet o encarou com desdém.
— Eu não preciso da sua ajuda.
O líder dos cultistas, furioso, ergueu seu cajado. Imediatamente, raízes enegrecidas pelas trevas brotaram do chão, movendo-se com uma velocidade aterradora. Belmonte tentou desviar, mas as raízes o agarraram, enrolando-se em seu corpo e apertando-o como serpentes, sufocando sua respiração. Seu cetro foi arrancado de sua mão, caindo ao chão enquanto as raízes o imobilizavam por completo.
— Quem você você pensa que é? — gritou o cultista, com um brilho sádico nos olhos. — Vai morrer por sua insolência, e todos verão o poder de Lathrin!
Belmonte, lutando para respirar, sorriu amargamente.
— Você acha que conhece as Trevas? — ele murmurou com dificuldade. — Elas me moldaram. Me tornaram o que sou hoje.
Qualquer mago que se visse sem seu objeto de canalização de magia estaria condenado... Totalmente imóvel o garoto sentiu a essência elemental do fogo que existia no seu braço direito se agitar. Sem nenhum movimento ele queimou sua mana e ordenou que as chamas o envolvessem, imediatamente em forma de espiral o fogo começou a circular em volta do seu corpo, exibindo somente uma silhueta escura dentro das chamas, em poucos segundos as raízes das trevas foram consumidas e transformadas em cinzas. A visão causou pânico nos cultistas e seus gritos ecoaram pelas paredes do salão.
Quando as chamas finalmente se extinguiram, Belmonte estava de pé, livre, seu corpo ainda soltando fumaça. Um sorriso perigoso se formou em seus lábios, e seu olho bom brilhava com uma fúria incontrolável.
— Ele não é humano! — gritou um dos cultistas, apavorado. — Somente monstros não precisam de objetos para canalizar suas magias!
Belmonte deu um passo à frente, e o silêncio mortal que tomou conta do salão foi interrompido apenas pelo som suave de seus passos. O medo nos olhos dos cultistas era palpável.
O garoto, em silêncio, ergueu a mão ao rosto e retirou o tapa-olho. O que as pessoas viram a seguir fez o pânico se espalhar ainda mais rápido. Ao abrir o olho oculto, um brilho sobrenatural emanou dele, revelando uma visão aterradora: a íris era de um vermelho vibrante, com um formato reptiliano que parecia pulsar com uma energia maligna. O salão mergulhou em desespero diante daquilo que não parecia humano.
Olho Demoníaco do garoto |
Belmonte sentiu a onda massiva de informações inundar sua mente assim que o olho se abriu. Sua cabeça começou a menear de leve, tentando processar o turbilhão de dados transmitidos pelo olho monstruoso. Ele teve que concentrar toda a sua força mental para focar apenas na visão, ou correria o risco de desmaiar sob o fluxo insuportável. Após alguns segundos de controle, ele se estabilizou e continuou sua caminhada com a frieza habitual.
— É um demônio! — gritou uma das pessoas, correndo desesperada em direção à porta selada por magia.
— Podem me chamar de 'Olho do Inferno' — disse Belmonte, com um sorriso que parecia mais um aviso do que uma provocação.
— Só pode ser uma criatura das profundezas, enviada para nos punir por nossos crimes! — murmurou outro, aterrorizado.
Enquanto observava o caos se instaurar, Belmonte se abaixou calmamente e pegou seu cetro, que jazia ao seu lado no chão. O líder cultista, em pânico, proferiu outro feitiço. Toras de madeira emergiram das paredes, avançando com a intenção de esmagar o garoto. Mas Belmonte moveu-se com uma velocidade sobre-humana, tornando-se apenas um borrão aos olhos dos que assistiam. Em um instante, ele estava diante do cultista e, com um soco devastador, atingiu seu estômago com a mão enluvada. O impacto foi brutal. O corpo do cultista foi lançado vários metros pelo salão, colidindo violentamente contra uma parede, onde deixou uma mancha de sangue. Ele escorregou até o chão, imóvel, a cabeça baixa, com o sangue escorrendo pela parede até formar uma poça abaixo de seu corpo inerte.
— Sabe, magos são poderosos... — Belmonte disse, caminhando calmamente entre os cultistas que agora tentavam desesperadamente abrir a porta. — Mas não são páreo para a boa e velha força bruta.
— Faça alguma coisa, prefeito! — um dos cultistas gritou, o pânico em sua voz evidente. — Foi você quem nos meteu nessa! Inventou essa epidemia!
Belmonte parou bruscamente, seus olhos fixos no homem que falou.
— O que você disse? — ele perguntou, sua voz fria como o gelo. — O que vocês fizeram? — seu olho monstruoso começou a brilhar com uma fúria crescente enquanto ele encarava os outros. — FALEM! — ele gritou, a voz reverberando como um trovão no salão.
— E…eu só queria que as pessoas fizessem o que eu mandava... — um dos cultistas murmurou, quase inaudível, enquanto retirava o capuz, revelando-se um velho careca.
— DES-EM-BU-CHA! — Belmonte rugiu, o brilho vermelho de seu olho se intensificando até faíscas de fogo começarem a brotar dele.
— Eu... eu só queria mais impostos... — o velho falou rapidamente, o desespero claro em sua voz. — Por favor, eu... eu não sabia...
— Não sabia O QUÊ? — Belmonte o interrompeu, sua voz cheia de desprezo enquanto faíscas de fogo dançavam pelo ar.
— A gente só... só encomendou uma gripezinha, altamente contagiosa, para o Dalibor... — o prefeito balbuciou. — Não sabíamos…
Não podia ser verdade, Dalibor estava envolvido nisso?
— O que vocês fizeram? — Belmonte repetiu, agora já sabendo a resposta, mas querendo ouvir da boca do velho.
— A gente só queria que a população ficasse mais dócil, obediente... eram só negócios. Queríamos mais dinheiro.
— "Nós"? Quem é "nós"? — Belmonte indagou, cada vez mais impaciente.
— Todos os políticos da cidade... depois iríamos vender a doença para outras cidades... fazer o mesmo... mas não sabíamos...
— Vocês não sabiam que sua 'gripezinha' iria sair do controle e se mutar incontáveis vezes? — Belmonte inquiriu, sua fúria alcançando um novo nível.
— Na..não... é isso mesmo — o prefeito admitiu, encolhendo-se diante da fúria crescente de Belmonte.
— E os idosos? Os fracos e doentes que pereceriam por causa dessa sua 'gripezinha'? — Belmonte perguntou, virando as costas para os cultistas, tentando controlar a raiva em sua voz.
— Efeito colateral... eles sobrecarregavam o sistema de saúde da cidade...
— Você mexe com as Trevas... e elas sempre mexem de volta — Belmonte sussurrou, tentando se acalmar, caminhando até o altar.
Ao chegar, ele examinou o pergaminho que Lathrin usava para realizar o ritual. Era um complexo artefato que transferia a saúde dos pobres para os ricos. Belmonte, agora calmo e sereno, enrolou o pergaminho e o guardou nas vestes.
— Quem deu isso a vocês? — ele perguntou, sua voz baixa.
— Dalibor... — respondeu o prefeito, a voz trêmula.
Belmonte não podia acreditar. Dalibor, o Medimago respeitado que ele conhecera, estava envolvido em algo tão vil e sombrio. O pergaminho era de uma complexidade impressionante — só alguém profundamente alinhado com as Trevas seria capaz de escrever algo assim. Ele precisaria lidar com isso mais tarde.
De repente, um som perturbador veio da pilha de corpos dos civis sacrificados. Algum deles teria sobrevivido? Belmonte, com seu olho monstruoso ainda aberto, examinou a pilha cuidadosamente. Satisfeito com o que viu, recolocou o tapa-olho e se voltou para os cultistas.
— O que você vai fazer agora? — o prefeito perguntou, quase sem voz.
— Nada — Belmonte respondeu, um sorriso sombrio surgindo em seus lábios. — Em breve, vocês se tornarão o que estavam tentando escapar.
Com um gesto de seu cetro, ele se lançou de volta à claraboia por onde havia entrado, impulsionado por uma rajada de ar que encheu o salão de poeira mais uma vez. Quando a poeira baixou, uma cena horrível se desdobrou diante dos cultistas: os corpos sacrificados estavam de pé. Manchados de negras chagas e cobertos de pus e sangue, eles cambaleavam de forma grotesca, como se não soubessem onde estavam. Então, avistaram os cultistas aglomerados junto à porta, e o instinto de predador despertou.
Para o horror dos cultistas, os mortos-vivos avançaram com surpreendente rapidez, bocas abertas, cheias de dentes afiados. Os primeiros foram pegos e devorados vivos, suas carnes arrancadas entre gritos desesperados. Os demais se jogaram contra as paredes, tentando escapar do inevitável.
Belmonte já havia deixado a claraboia, descendo para as ruas silenciosas da cidade, sem olhar para trás.
***
Enquanto caminhava acelerado até o templo de Anhun sob a luz pálida da lua, Belmonte tentava processar tudo o que havia testemunhado naquela noite. Estranhamente não havia mais ninguém nas portas da fortaleza, nenhum cidadão procurando cura, talvez tivessem voltado para suas casas para passar a noite. Mas seus pensamentos estavam focados no que acintecera ali naquela noite, os mortos-vivos eram resultado direto do ritual sombrio que presenciara ou uma nova mutação da doença que devastava a cidade? Ele logo obteve a resposta. Ao passar novamente pelas barricadas que isolavam os bairros pobres, avistou multidões de criaturas cambaleantes, cobertas de chagas e pus, arremessando-se contra as paredes dos edifícios e as frágeis barreiras improvisadas. Belmonte mal teve tempo de refletir quando, ao olhar novamente para frente, viu um grupo de mortos-vivos correndo em sua direção, bocas escancaradas, famintos por carne viva.
Com um rápido movimento do cetro, ele canalizou chamas intensas, reduzindo as criaturas a cinzas em segundos. Seu coração acelerou, mas ele continuou correndo, agora com uma urgência renovada, em direção ao centro de cura. Pelo caminho, outra dúzia de mortos-vivos tentou persegui-lo, mas foram incinerados antes mesmo de se aproximarem.
Ao chegar ao centro de triagem, Belmonte encontrou o lugar vazio. O silêncio era perturbador, exceto por algo que parecia arranhar as paredes dentro do local. Ele empurrou as portas do templo de Anhun, e o que viu fez seu estômago revirar. O salão, outrora sagrado, agora estava infestado por mortos-vivos, que rapidamente avançaram em sua direção. Belmonte reconheceu alguns dos rostos – pacientes que ele havia tratado, curandeiros que se tornaram seus poucos amigos naquela cidade amaldiçoada. Seus corações agora corrompidos e vazios, a bondade que um dia tiveram foi apagada pela praga.
Por um breve instante, Belmonte encostou-se às portas do templo, sentindo o peso do luto e da culpa esmagá-lo. Ele lamentou profundamente por aquelas vidas que, apesar de seus esforços, estavam agora perdidas para sempre. As batidas violentas dos mortos-vivos nas portas ecoavam as suas costas. Antes que elas cedesse, Belmonte se ergueu e reuniu todas as suas forças, canalizando uma torrente de fogo intenso, incinerando completamente o templo e as criaturas que um dia foram seus amigos.
Com as chamas ainda rugindo às suas costas, Belmonte se afastou. Ele olhou uma última vez para o templo em chamas antes de seguir rumo à clínica onde Dalibor "trabalhava" na suposta cura da epidemia. Ao alcançar a porta, ele a arrombou com um chute poderoso, a madeira antiga cedeu sob sua força. O garoto lançou um último olhar para o templo ardente antes de adentrar o prédio.
A clínica estava estranhamente ordenada, contrastando com o caos que se desenrolava do lado de fora. O ambiente estava limpo e organizado, como se a praga que assolava a cidade não existisse ali. Belmonte caminhava com cautela, abrindo portas uma a uma. Havia algo profundamente errado naquele lugar, estava muito… arrumado, como se não estivesse sendo usado. Após vasculhar vários cômodos, ele finalmente encontrou uma escada que descia até um porão escondido.
Descendo silenciosamente os degraus, Belmonte foi recebido por uma visão aterradora. O que parecia ser o laboratório de Dalibor mais se assemelhava a um covil de horrores. Prisioneiros mortos estavam acorrentados às paredes, suas carnes corroídas pelas várias mutações da doença. Variantes da praga estavam espalhadas por todos os lados, misturadas em frascos e seringas. E no centro de tudo, Dalibor, o médico que Belmonte outrora respeitara, murmurava em uma língua ancestral e esquecida, os Anti-Fonemas das Trevas – palavras que Belmonte conhecia muito bem.
— O que você fez, Dalibor? — Belmonte perguntou, a voz grave, sua mão apertando o cetro com força.
— Ah, você descobriu, afinal... — disse o velho sem se virar, interrompendo seu ritual. — Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, você descobriria a verdade. Foi por isso que o mantive tão próximo a mim.
— Por quê? — Belmonte insistiu, dando um passo à frente. — Por que usou as Trevas para criar uma doença tão devastadora?
Finalmente, Dalibor se virou, revelando seu rosto distorcido. Veias negras pulsavam sob sua pele, como se a própria doença estivesse enraizada em seu corpo. Seus olhos brilhavam com uma luz doentia, uma fúria insana, misturada com algo que parecia ser orgulho.
— Você ainda não entende, garoto? — Dalibor disse, erguendo uma seringa cheia de um líquido escuro. — A praga fala comigo, ela me guia, com ela eu estou ajudando a humanidade a alcançar um novo patamar de evolução. Estou moldando o próximo passo da nossa existência. Cada variante que eu crio nos aproxima da imortalidade, de um poder que transcende a vida e a morte.
Sem hesitar, ele cravou a seringa em seu próprio braço, injetando o conteúdo em suas veias. O corpo do médico começou a convulsionar, veias negras se espalhando ainda mais por sua pele, enquanto seus olhos brilhavam com um brilho roxo.
— Então era você quem estava alterando a praga... — Belmonte sussurrou, compreendendo a extensão da loucura do médico. — Não eram mutações naturais. Você a estava modificando, tornando-a mais forte, mais letal.
Dalibor riu, uma risada distorcida e perturbadora.
— Ah, meu garoto brilhante, você sempre foi tão rápido para entender. Mas não tema. Logo você também se juntará a mim, como parte dessa nova era, tenho uma seringa reservada para você também.
O monstro avançou contra Belmonte, que imediatamente deu um passo atrás, levando a mão ao tapa olho e revelando seu olho monstruoso que começou a brilhar com uma fúria intensa.
— Isso é um olho de dragão? — Dalibor perguntou, sua voz misturando surpresa e diversão. — Você é uma quimera? — Ele riu, uma risada que reverberava de forma perturbadora. — Eu devia ter imaginado...
De repente, o corpo do velho começou a sofrer convulsões ainda mais violentas. Seus músculos incharam, rasgando suas roupas em um crescendo grotesco de carne e ossos. Em segundos, a figura de Dalibor havia se transformado em uma criatura massiva, o dobro do tamanho de um homem comum. Com um rugido animalesco, o monstro saltou em direção a Belmonte.
Dalibor Monstro |
O garoto, ágil como o vento, esquivou-se habilidosamente dos golpes brutais desferidos pela criatura. Belmonte sabia que está luta não poderia durar muito, tinha quase exaurido suas reservas de mana. Em um movimento rápido, enquanto saltava para desviar de um soco devastador, ele concentrou sua energia mágica e formou uma bola de fogo brilhante no cetro. Com um gesto decidido, lançou-a em direção ao monstro. Uma explosão ressoou, lançando chamas para todos os lados, mas, ao se dissipar, o que restou foi apenas Dalibor, intacto, suas roupas consumidas pelas chamas. Isso era um grande problema, não tinha mais mana para executar muitos ataques desta magnitude.
— Magias não funcionarão em mim. — Dalibor riu com desdém, sua voz ecoando em um tom ameaçador. — Pensei que você fosse mais inteligente, Belmonte. Não me subestime. Junte-se a mim antes que não tenha mais forças para resistir às suas próprias mutações.
— Nunca! Se a magia não funciona em você, vou derrotá-lo na força bruta! — retorquiu o garoto.
Ele sacou de suas vestes uma adaga curva com lâmina negra, o metal reluzindo sob a luz fraca, e assumiu uma postura de combate diante do médico. Assim que a criatura avançou novamente, armada com sua força monstruosa, Belmonte atacou. Com movimentos rápidos e precisos, ele estocou a criatura várias vezes, mas, por mais afiada que fosse, sua adaga não conseguia penetrar a pele grossa e endurecida do monstro, que parecia mais uma armadura do que carne.
Os golpes ressoavam, mas cada estocada parecia apenas despertar a fúria de Dalibor, que, imperturbável, contra-atacava com ainda mais brutalidade.
Em um momento de descuido, enquanto estocava Dalibor com toda a sua força o monstro acertou um soco devastador em Belmonte, arremessando-o violentamente contra uma das paredes do laboratório. A força do impacto o deixou desorientado por alguns instantes, sangue brotava de sua boca, mas conseguiu recobrar a consciência antes de ver a criatura que tentava desferir outro golpe de cima para baixo onde ele estava caído. Em um movimento desesperado, Belmonte usou sua velocidade para escapar por um triz do ataque esmagador que desceu como uma marreta contra o chão.
— Esse olho de dragão te deu super velocidade... e o que mais? — rosnou o monstro, sua voz gutural reverberando pelo laboratório.
Sem outra escolha, Belmonte concentrou-se na essência elemental flamejante que pulsava em seu braço direito. Com um pensamento, a adaga que ele segurava começou a vibrar em um brilho incandescente, o metal aquecendo rapidamente, como se tivesse saído de uma fornalha. Fumaça começou a se erguer de seu braço, que logo foi envolto em chamas. As vestes que cobriam seu braço direito se desfizeram em cinzas, revelando a verdade oculta sob o pano: sua pele era avermelhada, coberta por pequenas e fumegantes escamas, e sua mão era uma garra monstruosa que segurava a adaga com firmeza.
— Um braço híbrido... — o monstro murmurou com fascínio, observando a transformação. — Como isso aconteceu? Você perdeu o braço? Criaram esse braço mutante e colocaram em você?
Belmonte não respondeu. Sua velocidade natural era equivalente a de alguém que estivesse impulsionando sua velocidade com magia. Mas mesmo assim ela não parecia suficiente. Então ele pensou, o quão rápido ele seria se usasse magia para impulsionar sua velocidade,certamente seus golpes também seriam mais poderosos, velocidade maior seria sinônimo de golpes mais fortes. Está seria sua última cartada, se não desse certo estaria acabado.
Ele se concentrou no fragmento do elemental do ar presente no seu centro, queimou a última mana que ainda lhe restava, então ele sentiu que o próprio ar do local respondia aos seus movimentos o empurrando para onde queria ir instintivamente, então ele avançou com velocidade sobrenatural em direção ao monstro, que se preparou para o impacto. No último instante, quando estavam prestes a colidir no centro do laboratório, Belmonte desapareceu com um forte deslocamento de ar diante dos olhos da criatura então ele parou e reapareceu logo atrás do monstro, agora em uma postura relaxada, a adaga ainda incandescente na sua mão monstruosa, como se soubesse que já havia vencido.
O monstro, atordoado e confuso, olhou ao redor tentando compreender o que havia acontecido. Uma dor aguda irrompeu em seu enorme abdômen. Ao baixar os olhos, viu um corte profundo que rasgava sua carne de forma implacável. Suas entranhas começaram a escorregar para fora, caindo no chão em uma velocidade assustadora. Ele, em pânico, tentou segurar suas tripas com as mãos enormes, empurrando-as de volta para dentro de seu corpo com força brutal. Mas a cada punhado que enfiava de volta, mais vísceras escapavam pelo corte na sua enorme barriga, escorrendo pelo chão ensanguentado.
O monstro ergueu os olhos para Belmonte, como se implorasse por piedade — um último pedido de misericórdia. Mas, em vez de uma resposta, o garoto com um forte deslocamento de ar correu em direção a Dalibor então ele desapareceu novamente de sua visão. Instantes depois, o monstro sentiu uma dor lancinante no pescoço, uma dor que parecia desconectar sua mente do corpo. Sua visão turvou, e ele teve a estranha sensação de estar girando descontroladamente no ar.
Não demorou para que ele percebesse a terrível verdade: era sua cabeça que estava girando, separada de seu corpo. Enquanto rolava pelo chão, ele viu de relance seu corpo enorme e mutilado desmoronando sem vida ao seu lado. Seus olhos, agora incapazes de fechar, ainda captavam imagens embaçadas do que estava à sua frente. A visão continuou a girar até que ele finalmente viu um pé diante de si. Seus olhos percorreram o caminho até encontrar Belmonte, silhuetado contra a luz do amanhecer que entrava pela pequena janela do porão, com sangue escorrendo pelos cantos dos lábios, as chamas de seu braço ainda pulsando com intensidade.
A bota de Belmonte se ergueu lentamente. E, com um golpe rápido e implacável, ela desceu em sua direção. O mundo se apagou. O monstro não sentiu mais nada.
Belmonte permaneceu ali por um instante, imóvel, observando o corpo decapitado à sua frente, enquanto as chamas que envolviam seu braço finalmente começavam a se extinguir.
***
Nave dos Arcanos |
Um objeto metálico colossal, em formato de gota, desceu lentamente dos céus, impulsionado por fortes deslocamentos de ar que magicamente saiam de turbinas no seu casco. Sua superfície era brilhante, refletindo o pouco de luz que restava no horizonte. De suas dezenas de janelas, luzes intensas emanavam, e silhuetas humanas observavam a paisagem abaixo. O enorme artefato tocou o solo diante das gigantescas muralhas de uma cidade abandonada. Uma placa, meio corroída e torta, pendia sobre os portões da cidade, com uma inscrição gravada: "Adremalech, Cidade da Morte".
A rampa da nave desceu com um rangido, e uma dezena de soldados em armaduras pesadas emergiu em formação perfeita. As placas metálicas de suas armaduras tilintavam enquanto eles corriam em direção ao portão. Com um impacto feroz, forçaram a entrada, retirando as barricadas posicionadas por fora e quebrando a antiga porta para adentrar a cidade amaldiçoada.
Horas mais tarde, uma tenda de comando fora erguida no perímetro, fora do alcance da infecção. Dois homens desceram pela rampa da nave. O mais velho, trajando túnicas negras e uma armadura de couro envernizado, usava um par de óculos inusitados — várias lentes coloridas ajustáveis que podiam ser giradas para diferentes posições. Ele tinha uma expressão fria e calculista. Ao seu lado, um homem mais jovem trajando a mesma armadura mas sem insígnias, tinha semblante severo, e irradiava uma fúria contida. Ambos avançaram em direção à tenda, onde o capitão da expedição já os aguardava.
— Capitão, o que descobriu?
— Arcano Talon, a cidade está condenada. Todos os seus habitantes foram transformados em mortos-vivos, criaturas violentas que devoram tudo que ainda respira. — O capitão falava em tom grave, apontando para a desolação além das muralhas.
— Era o que temíamos... uma mutação da Infestação. — O Arcano suspirou, seu olhar sombrio. — Recebemos os primeiros indícios tarde demais. Mas por que se espalhou tão rápido?
— Não sabemos ao certo, mas encontramos isto. — O capitão entregou um diário surrado ao Arcano. — É um relato detalhado dos eventos.
Talon começou a folhear o diário lentamente, seus dedos passando pelas páginas como se pudesse absorver o conteúdo apenas pelo toque. Vincent, o jovem ao seu lado, reconheceu a caligrafia imediatamente.
— É a letra de Azeron. Ele não pode estar longe. Devemos encontrá-lo, mestre! — disse o garoto, seu tom impaciente, os olhos ardendo de determinação.
Talon ergueu a mão com calma.
— Paciência, Vincenti. Haveremos de cruzar com Azeron em breve. Não podemos nos apressar. — Ele continuava a ler passando seus dedos sobre as páginas, seu olhar fixo em um ponto distante. — Além disso, há coisas mais urgentes a se resolver. Azeron aparentemente escreveu um relato detalhado de tudo que aconteceu aqui, li as informações por alto mas parece que o médico responsável da cidade foi quem se corrompeu pelas trevas. Azeron também descobriu que a única maneira de erradicar completamente as Trevas deste mundo é reduzir seus portadores a cinzas.
Vincent cerrou os punhos.
— Paciência? Estamos há meses rastreando-o, e esta é nossa primeira pista sólida. Não podemos perder esta oportunidade!
Talon ainda olhando para o nada fechou o diário com um estalido seco.
— Nós nos ocuparemos disso depois. Primeiro, temos de purificar esta cidade. — Ele se voltou para o capitão. — Prepare os canhões mágicos. Vamos transformar Adremalech em uma pira funerária.
Enquanto se dirigiam de volta à nave, Vincent lançou um último olhar para as muralhas sombrias da cidade, e depois para a floresta ao redor, como se esperasse que algo ou alguém surgisse das sombras.
Dentro da nave, os preparativos para a decolagem já estavam em andamento no seu centro um enorme reator de energia mágica girava captando mana ambiente para a decolagem, quando um soldado se aproximou rapidamente do Arcano, com uma mensagem em mãos.
— Senhor, nosso telepata recebeu uma comunicação pela Rede Telepática Mundial. — O soldado entregou o papel.
Talon passou os dedos sobre as letras do documento com atenção, sua expressão ficando ainda mais sombria à medida que seus dedos corriam pela mensagem. Ao terminar, ele segurou o papel por um instante antes de recitá-lo em voz alta para Vincenti:
"A cidade não deve ser destruída. Os portões devem ser selados para sempre.
Assinado: Ahriman, Arqui Mestre dos Arcanos Imperiais.
Fim da mensagem"
O silêncio que se seguiu foi pesado. Talon dobrou a mensagem com cuidado, seus olhos ainda fixos no nada a sua frente, enquanto Vincent cerrava os dentes, a raiva borbulhando sob a superfície.
***
Estava quase anoitecendo, Azeron caminhava pelas muralhas silenciosamente, seus olhos atentos à movimentação distante. Havia avistado a nave descendo e esperou para ver se iriam finalmente destruir a cidade e extinguir a ameaça, mas nada disso aconteceu. Os guardas vasculharam cada canto, encontraram seu diário na sala da guarda onde ele havia deixado para ser encontrado mais facilmente — o mesmo que ele escrevera sob as ordens de Dalibor. Lá, ele detalhara os eventos: a loucura de Dalibor, a corrupção política que infestava Adremalech, e o fim que dera ao médico, transformado em um monstro. Mas, apesar de tudo, os Arcanos não iriam destruir a cidade. Em vez disso, estavam lacrando todas as saídas, e ele percebeu que magos preparavam-se para selar o espaço aéreo com um feitiço — que começa lentamente a criar uma cúpula invisível sobre a cidade.
Era hora de partir. Em breve, não haveria mais como escapar.
Azeron com sua mochila nas costas e roupas novas encontradas nas ruínas da cidade, deslizou pelas sombras, movendo-se até uma posição segura onde ninguém pudesse vê-lo. Preparou seu cetro, concentrando-se para conjurar uma magia que amorteceria sua queda quando saltasse. Foi nesse momento que uma voz inesperada e familiar fez seu coração quase parar, e ele quase perdeu o equilíbrio.
— Você deu um belo espetáculo ontem, não foi?
Azeron virou-se bruscamente para a origem da voz, e lá, numa parte escura da muralha, estava Sírio, sorrindo enquanto bebericava de um cantil, ele estava deitado em um saco quase do seu tamanho que parecia estar cheio de moedas ou outros objetos pequenos.
— Achei que não tivesse sobrevivido. — Azeron estreitou os olhos.
— Meu amigo, Sírio... Qual foi mesmo o sobrenome que eu te disse da última vez? — Sírio respondeu, com um ar debochado.
— Filaucioso. — Azeron falou, carregado de sarcasmo.
— Ah, sim! Filaucioso! Como pude me esquecer do meu próprio sobrenome? Sírio Filaucioso não pode ser morto assim tão facilmente, lembra que tenho muitas habilidades.
— Chega de joguinhos, Sírio. Por que ainda não fugiu e está aqui me esperando?
O sorriso de Sírio se alargou.
— Sabe, eu faço parte de uma guilda. E, uma vez por ano, tenho a obrigação de recrutar um novo membro para nossas fileiras.
— E o que isso tem a ver comigo? — Azeron franziu o cenho.
— Tem a ver que esse novo membro precisa ser, comprovadamente, mais poderoso do que quem o recruta. E, sinceramente, você é o cara mais forte que encontrei em muito tempo. — Sírio respondeu, inclinando-se levemente para frente, seu olhar cintilante de interesse.
— Então quer me recrutar? Por que eu entraria na sua guilda? — Azeron questionou, com desconfiança evidente em sua voz.
— Porque a guilda é secreta, repleta de gente muito forte, e, o mais importante, ela pode proteger você... deles. — Sírio fez um leve gesto com a cabeça, indicando os Arcanos que se movimentavam ao longe.
Azeron ficou em silêncio, observando Sírio com atenção. O homem magro e sorrateiro aproximou-se e lhe entregou um pequeno cartão de ouro finamente adornado com traços em baixo-relevo. Era tão fino quanto uma folha de papel e tinha apenas uma palavra gravada em ambos os lados: ERA.
— O que espera que eu faça com... — Azeron começou a falar, mas, ao levantar os olhos, Sírio já havia desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.
Ele olhou ao redor, procurando por qualquer sinal do homem, mas só encontrou o vazio. Segurando o cartão, saltou para fora da cidade antes que fosse tarde demais.
FIM
Imagens Geradas por IA.
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